O Paradoxo da Intolerância e a Democracia Brasileira

O Paradoxo da Intolerância e a Democracia Brasileira: entre a defesa institucional e o risco da iliberalidade
 
 O paradoxo da intolerância, formulado por Karl Popper em A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945), sustenta que uma sociedade que tolere irrestritamente os intolerantes corre o risco de ver a própria tolerância destruída. No contexto brasileiro, esse princípio tem sido invocado, implícita ou explicitamente, por instituições de cúpula do Estado como fundamento para justificar medidas restritivas de direitos fundamentais, especialmente contra correntes de caráter conservador. O presente trabalho sustenta que a aplicação acrítica do paradoxo gera um novo dilema, denominado aqui de paradoxo da iliberalidade, no qual servidores públicos e magistrados, ao se colocarem como curadores da democracia, praticam atos contrários ao pluralismo e às garantias constitucionais.

  A Constituição da República de 1988 consagrou o Brasil como um Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a soberania popular, o pluralismo político e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, III e V). Tais pilares indicam que a democracia não é propriedade das instituições, mas um patrimônio comum da sociedade civil.

 Nos últimos anos, contudo, a retórica do paradoxo da intolerância, formulada por Karl Popper, tem sido invocada por tribunais superiores e altos servidores públicos como justificativa para medidas de restrição a manifestações políticas classificadas como “antidemocráticas”. A questão central que se coloca é: até que ponto a intolerância contra os intolerantes pode ser exercida sem que a democracia se converta em regime iliberal ?

O Paradoxo da Intolerância em Karl Popper (1945, p. 546) formula o seguinte princípio:
“A tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e a tolerância com eles.”

 Essa formulação, entretanto, não se converteu em carta branca para repressão indiscriminada. O próprio Popper ressalvou que o combate ao intolerante deve ser proporcional e necessário, dirigido não contra ideias em si, mas contra práticas que visem destruir as condições mínimas do debate racional.

O Uso Institucional do Paradoxo no Brasil:

 O cenário político brasileiro recente testemunhou a expansão da interpretação de “atos antidemocráticos”. Instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passaram a exercer poderes atípicos de investigação, sanção e censura em nome da preservação da democracia.

Exemplo: Inquérito das Fake News (Inq. 4781/STF), instaurado de ofício, sem provocação externa, criticado por ampla parcela da doutrina constitucional (MENDES; BRANCO, 2021, p. 1322).
Exemplo: decisões do TSE em 2022 que determinaram remoção imediata de conteúdos eleitorais considerados desinformativos, com prazos de apenas 2 horas, sob pena de multas elevadas (Res. TSE nº 23.714/2022).

 Durante essas práticas, servidores públicos e magistrados deixam de agir como servidores da sociedade e assumem a posição de curadores da democracia, selecionando quais manifestações são legítimas e quais devem ser silenciadas.

O Paradoxo da Iliberalidade:

 Da aplicação indiscriminada do paradoxo de Popper decorre um novo dilema, que aqui denomina-se de paradoxo da iliberalidade:
 Para proteger a democracia liberal, adota-se uma postura iliberal, restringindo liberdades constitucionais.
 O resultado é a criação de uma “democracia defensiva” que, ao exagerar nos mecanismos de autopreservação, enfraquece sua própria legitimidade.
 Essa tensão é identificada por Zakaria (2003) ao tratar do fenômeno das democracias iliberais, regimes que preservam procedimentos eleitorais, mas corroem garantias individuais.

Algumas reflexões críticas:

 O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em casos paradigmáticos, a necessidade de preservar o espaço público mesmo para manifestações contrárias às instituições. Na ADPF 187/DF (2011), conhecida como “Marcha da Maconha”, a Corte decidiu que o direito de reunião e de manifestação deve prevalecer, ainda que se trate de discurso contrário à legislação vigente.
 
 O contraste com decisões recentes evidencia o risco de incoerência: ora o STF defende que até ideias antissistêmicas merecem proteção, ora sustenta que no processo de defesa da democracia justifica-se a  censura sumária.

 A partir de Rawls (1993), o pluralismo razoável constitui elemento essencial de sociedades democráticas. A intolerância institucional, ainda que justificada pela retórica da autopreservação, ameaça esse pluralismo e mina a confiança social nas instituições.

O Paradoxo Normativo da Lei nº 15.100/2024( proibição de smartPhones ou computadores portáteis dos pobres )

  Nesse mesmo sentido, a promulgação da Lei nº 15.100/2024, que proíbe o uso de celulares e smartphones em estabelecimentos de ensino, representa um exemplo paradigmático do paradoxo da intolerância aplicado ao campo educacional. A justificativa oficial da norma sustenta que tais dispositivos seriam prejudiciais ao processo pedagógico, à concentração e à disciplina, motivo pelo qual se adota uma postura de intolerância em relação ao uso da tecnologia no espaço escolar. Contudo, essa vedação entra em evidente tensão com o próprio texto constitucional (art. 205 da CF/88), que impõe ao Estado o dever de preparar os jovens para o exercício da cidadania e para o mundo do trabalho. Em um cenário em que o smartphone constitui o “computador de bolso” dominante, indispensável para a vida social e profissional, proibir seu uso generalizado equivale a limitar as condições de formação crítica e digital dos estudantes.

  Assim, a Lei nº 15.100 revela um paradoxo normativo: ao pretender proteger a educação, acaba por fragilizá-la, pois nega aos jovens o acesso orientado às ferramentas que definirão seu futuro. A lógica de defesa — semelhante àquela evocada pelo paradoxo da intolerância popperiano — resulta em um paradoxo da iliberalidade: restringe-se o presente em nome da proteção do futuro, mas o efeito prático é justamente incapacitar as novas gerações para a cidadania digital e para o mercado de trabalho contemporâneo. Como observa Castells (2009), a era da informação exige sujeitos aptos a navegar criticamente nas redes digitais; excluí-los dessa experiência não é proteger a educação, mas condená-la à anacronia.

 Em suma, o paradoxo da intolerância permanece atual e relevante, sobretudo em tempos de polarização política. Contudo, sua aplicação acrítica pelo Estado brasileiro tem conduzido a um paradoxo da iliberalidade, em que servidores e magistrados, no intuito de proteger a democracia, agem como seus proprietários.

  A defesa da democracia exige distinguir entre discursos efetivamente violentos e a mera divergência ideológica. Caso contrário, corre-se o risco de consolidar um regime em que a democracia não pertence mais ao povo soberano, mas a uma elite institucional que, sob o pretexto de guardá-la, restringe sua própria essência.
Referências Bibliográficas


BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 187/DF. Rel. Min. Celso de Mello, j. 15.06.2011.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.714/2022.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. 4. ed. São Paulo: Itatiaia, 1945.
RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ZAKARIA, Fareed. O Futuro da Liberdade: a democracia iliberal em casa e no exterior. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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